O corpo de Alice doía. Tinha a sensação de que até suas pálpebras estalariam se ela tentasse abrir os olhos.
A verdade é, ela acordou mais cansado do que quando dormiu. Ou tentou dormir. As pedras eram muito duras, o ar noturno era muito frio, insetos e pequenos roedores corriam de lá para cá naquelas ruínas... Isso sem falar que ela estava faminta, e a fome deixava uma sensação estranha na sua boca.
Rolou um pouco, de forma que pudesse ver atrás de si, e se surpreendeu ao ver que Hans sumira.
Levantou-se e sentiu alguns ossos estalarem apenas com esse movimento. Olhou a sua volta e começou a ficar preocupada. Ele havia ido embora. Ele a havia deixado para trás, dentro de umas ruínas, com fome, sede e sem dinheiro!
Como alguém conseguia ser tão covarde?!
—Ah, você acordou. -A voz do rapaz chamara a sua atenção, juntamente com uma fruta que caiu em cima de sua cabeça. Ela a pegou antes que caísse no chão e olhou para cima, vendo Hans se inclinando diante o buraco no teto. -Acha que consegue subir sozinha?
—Claro que sim. -Alice revirou os olhos verdes, fazendo um gesto de falso desprezo com uma das mãos. -Não está vendo a minha cara de ninja que consegue pular cinco de altura e dar um duplo twist carpado no ar? Claro que não! Aliás, como você chegou até ai?!
—Você aprende muito morando nas ruas. - Hans respondeu em um tom que Alice quase não conseguiu ouvir. Logo depois, uma corda deslizou pelo buraco até chegar a jovem, balançando na frente da mesma. -Segura ai que eu te puxo.
A garota olhou para cima, sem saber se poderia acreditar nele. Era bem capaz de ele simplesmente largar a corda quando ela se segurasse e deixá-la lá, para sempre.
—Eu não vou te abandonar aí, droga. -Hans acenou com uma das mãos, mostrando que estava segurando a corda. -Mas até que não me parece uma ideia tão ruim assim...
—Eu já estou subindo! -Alice exclamou, pegando na corda antes que o prateado tivesse a chance de realmente soltar a corda e deixá-la para trás, somente com uma mísera maçã (ou pelo menos parecia muito uma maçã, tirando o fato de que era violeta e era mais arredondado... Mas vamos dizer que era uma maçã) para comer pelo resto da vida.
Encaixou o talo do fruto entre os dentes e segurou bem firme na corda, dando sinal que Hans poderia puxar. Foi sendo erguida rapidamente e, quando deu por si, já estava fora do buraco, sentada no chão poeirento das ruínas ao lado do rapaz.
—Foi rápido... -Comentou surpresa, olhando para Hans. E ficou ainda mais surpresa ao perceber que ele não parecia nenhum pouco cansado. Estava em pé, tranqüilo, enrolando a corda e deixando-a em um canto qualquer.
—Você é muito leve. -Hans comentou, espanando as mãos enquanto se virava para ela. -Está comendo direito?
—Eu estava, até vir parar aqui e você me deixar morrendo de fome... -Alice respondeu emburrada. Encarou a fruta em suas mãos. O cheiro era tão doce e suave. Parecia-se com essência de baunilha. A fome também não ajudava.
Quando começaram a andar, ficou só olhando para o fruto, se perguntando se era ou não comestível. Ora, quem garantiria que ele não queria se livrar dela?
Mas acabou não resistindo e comeu um pedaço. Era crocante, mas também era macio, parecendo mesmo com uma maçã madura. Tinha um gosto que parecia bastante com milk-shake de morango com... Menta? E também deixava uma sensação gostosa na boca, como se estivesse bebendo refrigerante.
—Wah, que gostoso! -Exclamou, os olhos brilhando e abocanhando mais um pedaço. Sem nem terminar de mastigar, se virou para Hans. -O que é isso?
—Uma fruta. -Ele respondeu, sem se virar para ela.
—Que fruta? -Alice engoliu o pedaço que estava na boca e limpou o suco que escorria pelo queixo. A verdade é que já se acostumara com essa parte do Hans de sempre levar ao pé da letra cada pergunta que ela fazia.
—Essa que você está comendo. -Hans se virou para ela e apontou a fruta nas mãos da jovem. -E bem rápido, por sinal. -E voltou a andar.
—Eu to falando sério. -Grunhiu em resposta, se segurando para não tacar aquilo na cabeça dele. Mas estaria duplamente encrencada se o fizesse, perdendo o único alimento e única companhia simultaneamente, então...
Continuaram andando por algum tempo, em silencio. Hans não fazia questão de começar uma conversa, e Alice estava ocupada demais comendo aquela fruta. Começou a abrir a boca para tentar perguntar o nome daquilo que comia, mas ele foi mais rápido.
—Lillape. -Percebeu o silêncio e chegou a conclusão de que ela não havia pegado a ideia. -Isso aí que você está comendo é uma lillape.
—Ah... -Alice murmurou. Olhou para o caroço da fruta e pressionou os lábios. Nem percebera que tinha acabado tão rápido. Apertou o passo até poder ficar do lado dele e o cutucou. -Tem mais ai?
—Não. -Curto, direto e simples.
Alice abaixou a cabeça, derrotada. Não que ainda estivesse morta de fome. Na verdade, estava mais para gulosa. Queria mais lillape, e sua boca salivava só de pensar naquilo.
—Eu estava pensando... -Hans começou pensativo, olhando para nada em especial. Nem sabia por que começara a pensar naquilo, mas não conseguia deixar de ficar curioso. Virou-se para Alice e continuou. -Você é mesmo de outro mundo?
—Sou. -Ela respondeu timidamente. -Por quê?
—Não parece. -O prateado deu de ombros, tentando parecer desinteressado. -Sabe, você está reagindo com a mesma naturalidade de quem cresceu aqui. E talvez um pouco mais.
—Está falando do dragão? -Alice olhou para ele, surpresa. Sem encará-la, assentiu. A morena se voltou para frente e pôs um dos dedos no queixo, pensativa. -Agora que você falou... -Parou, obrigando-o a parar também. -É mesmo meio estranho.
—Ah, você acha?
—É que eu sempre sonhei com este lugar, desde pequena. -Ela olhou para cima, ainda com a pose pensativa. Fechou os olhos e continuou a falar, parecendo distante e reflexiva. -Então, ficar aqui é como por em prática tudo aquilo que eu treinei durante tantos anos. Eu nem sei direito se isso é real ou se é só mais um sonho... -Abriu as pálpebras, um brilho esperançoso em seus orbes verdes. Tocou levemente no rosto com as pontas dos dedos, cobrindo o sorriso leve que se formava. -Mas eu não quero acordar na minha cama e descobrir que não passa de mais um para a coleção. Quero muito que isso seja real.
Hans a fitou com seus olhos cor de limão. Aquele jeito de falar, o olhar... Até a aparência. Tudo isso lhe era desagradavelmente familiar, e lhe trazia lembranças não muito alegres.
Suspirou pesadamente. Não deveria começar a pensar no passado, não enquanto estivesse com ela. Droga. Será que a vila ainda estava longe? Se continuassem nesse ritmo, não iriam chegar nunca, e seria mais tempo tendo de aturá-la...
Sorriu. Aquela era a deixa perfeita para fazê-la ficar quieta, se divertir um pouco e, quem sabe, não acabava fazendo-a ir embora?
—Isso não é um sonho. -Hans segurou o ombro de Alice, fazendo-a se virar para ele. Sorriso suave, olhos tranqüilos... A garota ficou levemente surpresa com essa visão. -Se quiser, eu posso provar. É só fechar os olhos.
—É mesmo?! -Ela sentiu as bochechas corarem. Não era possível evitar, seus rostos estavam próximos. Muito próximos.
Próximos demais.
“Por favor, que não seja o que eu estou pensando!” pensou com todas as forças, fechando os olhos bem apertados. O coração palpitava e ela não sabia direito como reagir “Nós acabamos de nos conhecer!”
Hans teve que fazer muita força para não rir da cara dela. Os olhos espremidos, as bochechas vermelhas, os lábios reprimidos em uma linha... Ela estava caindo! Ele respirou fundo, se preparou psicologicamente para a dor que iria vir...
...E bateu com tudo sua testa na dela.
Alice deu um grito de dor enquanto se afastava, esfregando o lugar onde Hans batera. O prateado esfregou a própria e sorriu levemente, divertido. Vitória.
—Se quiser sonhar, durma a vontade! -Ele exclamou, fechando um dos olhos enquanto se esforçava para não demonstrar sinal de dor profunda. Se virou e fez que iria voltar a andar sem ela. -Já falei, eu sou um lobo solitário! Não ando em grupo!
—Seu idiota! -Alice agarrou o braço do rapaz, o impedindo de continuar e continuou com a mão livre sobre a testa que agora latejava. -Por acaso mijou no seu cérebro enquanto eu não estava olhando?! Não pode simplesmente bater em alguém mais fraco do que você!
—Se não gosta, pode ir embora! -Hans se livrou da mão dela com um movimento brusco. -Você já tem um wapen, não está mais indefesa assim!
—Eu sei quase nada sobre esse lugar além do básico sobre os wapens! -A morena choramingou enquanto esticava o braço, mostrando o pulso enfeitado pela pequena corrente que encontrara nas ruínas. -Nem sei como que se usa isso! Não pode me deixar assim!
—Escuta aqui...! -Ele começou, já se virando e ficando cara a cara com ela. Iria continuar, mas logo foi cortado por uma terceira voz, de uma terceira pessoa que eles nem haviam visto se aproximar.
—Com licença?
—O QUE FOI?! -Os dois se viraram irritados para a direção da voz, se deparando com uma jovem loira com os fios que ficavam pouco acima dos ombros. Os olhos violetas da garota estavam arregalados com o susto, e uma pequena criatura redonda, com pelos alaranjados e orelhas bem compridas, repousava em seu ombro.
Sem jeito, Hans e Alice se afastaram, parecendo ligeiramente mais calmos. A loira olhou de um para o outro e soltou uma risadinha discreta.
—Vocês parecem ter certo problema de convivência... -Ela comentou, parecendo se divertir com a situação. -Não querem falar sobre isso e ver se tem alguma solução?
—Bom... -Alice começou, cruzando os braços. -Ele...
—Ela é uma bebezona covarde que fica choramingando por aí que tem medo de ficar sozinha. -Hans a cortou, apontando para a morena como que se falasse o óbvio.
—Quem você esta chamando de bebezona covarde?! E quando foi que eu chorei?! -Alice berrou para ele com os punhos fechados, começando assim outro bate boca com o acompanhante.
A jovem fitou aquilo com uma expressão séria. A criaturinha peluda em seu ombro abriu um dos pequenos olhos na direção da dona. Suas orelhas, até então caídas, se levantaram um pouco.
—Mayumi... -sussurrou com sua voz fininha. Quando a jovem virou o seu rosto para o pequeno ser, continuou. -Esse não é o rapaz da recompensa, dai?
—Tatuagens, cabelo prateado, wapens em todos os lugares possíveis... -Ela respondeu em mesmo tom, se voltando para aqueles dois que ainda discutiam. Dessa vez ia ser bem fácil. -Sim, Daidai. É ele.
—E como vai fazer para levá-lo, dai?
—Observe. -Mayumi sorriu e piscou um olho para a pequena mascote.
Daidai se aconchegou novamente no ombro da dona. Ela arqueou uma das sobrancelhas douradas na direção de Alice e Hans. Mayumi nem prestava muita atenção no que eles gritavam ali, sabendo que era algo inútil e sem sentido algum. Tudo o que se preocupava era em tentar refazer uma atmosfera agradável e gentil.
—Ora, ora... -Ela sorriu sem graça, vendo quando eles pararam e cruzaram os braços, um de costas para o outro. -Parece que vocês têm um certo... Problema de convívio... -Mayumi se virou para Alice, um sorriso compreensivo no rosto. -Você é mesmo uma bebezona chorona e covarde que tem medo de ficar sozinha?
—Claro que não! -Alice exclamou, o rosto enrubescendo quando ela se virou revoltada para a loira. Em seguida encolheu os ombros e virou a cara, emburrada. -Ele que é um idiota rabugento que não quer ajudar uma garota indefesa!
—Isso é verdade? -Mayumi se virou para Hans, com uma expressão de surpresa.
—Claro que não! Essa daí que é uma dramática. -Ele respondeu meio irritado, fechando os olhos e franzindo as sobrancelhas. -Eu nem faço questão de ficar andando com ela! Ela só está aqui porque quer!
Mayumi olhou para Daidai em seu ombro, com um sorriso discreto que nem Hans e nem Alice notaram. Deu um pigarro e se voltou para eles.
—Não sei o que aconteceu para vocês ficarem assim... -Mayumi revezou o olhar entre Alice e Hans. Nem precisou se esforçar muito. Eles mesmos já estavam ansiosos para se verem livres um do outro. -Mas não é saudável vocês continuarem juntos. Pessoas incompatíveis, quando brigam, tendem a acabar fazendo algo irresponsável, como se matarem...
Hans e Alice se voltaram para ela. Já sabiam onde a conversa ia levar, e até que estavam interessados naquilo.
—Pelo bem de vocês, é melhor se separarem, mesmo que temporariamente. -Continuou, colocando as mãos na cintura com um sorriso satisfeito. -E então? O que me dizem?